HOMILIA 2018
O DEUS MENINO NASCEU
Caros amigos e irmãos
Unidos a toda a Igreja que, hoje, celebra o Natal do Senhor. Unidos àqueles que adoraram o Deus Menino na gruta de Belém – Maria, José, os pastores, os Magos e, certamente, a corte celeste. Unidos a todos aqueles que acreditaram no mistério de Deus revelado em Jesus segundo as palavras do Apóstolo – «manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os povos». Unidos a todos aqueles que no tempo precedente ao seu nascimento viveram na expectativa da vinda do Messias e a alimentaram com as profecias do A. T. Aqui estamos nós, nesta noite santa de Natal (dia Santo de Natal), imitando Maria, José, os Pastores, os Reis Magos no acto de adoração de tão Magno mistério cheio de luz e de verdade para todo o homem e mulher que vêm a este mundo. Aqui estamos de coração orante nesta liturgia que revive o acontecimento de Belém e o reedita para todos nós. Aqui vimos guiados pela estrela da fé, a única que nos levará a Jesus, em peregrinação espiritual, existencial; a única que nos levará aos confins dos tempos, até à gruta de Belém, em atitude de escuta das profecias de Isaías:«Bem Aventurados sobre os montes os pés do mensageiro da paz» (dia) que da corte celeste ecoou na noite de Natal: «Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens por ele Amados». «O Povo que andava nas trevas viu uma grande luz» (vigília). Duma luz se trata; dum outro sol que brilha sobre o horizonte da história da humanidade; luz de quem disse de si mesmo: «eu sou a luz do mundo. Quem me segue não anda nas trevas». Aqui vimos guiados pela estrela da fé, em atitude de escuta do Apóstolo que, levantando o véu do mistério daquele Menino nascido em Belém, afirma: «manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens» (vigília). Jesus é o dom, o presente, a graça. Em atitude de escuta da Carta aos Hebreus que nos revela Jesus: a última palavra de Deus à humanidade: (dia) «Deus, que muitas vezes e de muitos modos, falara antigamente pelos profetas, nestes tempos que são os últimos, falou-nos por Seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o mundo» Aqui vimos guiados pela estrela da fé, em atitude de escuta do Anjo que disse aos pastores, e a nós, hoje: (vigília) «não temais porque vos anuncio uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos, hoje, o salvador, que é Cristo Senhor». Por esta santa liturgia, peregrinemos no tempo; prostremo-nos na gruta de Belém e adoremos Deus feito homem nascido de Maria. E ainda, por esta santa liturgia, deixemos que a gruta de Belém viaje até nós, atravessando os tempos, para que, nós, hoje, possamos adorar Jesus que se fez um de nós por amor. De facto, a liturgia cristã permite-nos beneficiar deste duplo movimento: o acontecimento vem até nós e nós vamos até à gruta de Belém. Teremos, certamente, dificuldades nesta peregrinação da fé, comuns aos homens do nosso tempo e de todos os tempos. Tomemos consciência delas para as superarmos e ajudarmos os nossos irmãos a superá-las. Quais são, então, estas principais dificuldades no despertar para a fé no mistério de Deus? Em primeiro lugar, o mistério do Natal está envolto na nuvem do tempo. Trata-se de acontecimentos do passado que directamente não presenciámos. Como é possível transpor esta barreira do tempo? Saibamos compreender que os acontecimentos da nossa salvação chegaram até nós através de dois meios: o registo histórico das Escrituras, e em particular dos Evangelhos, e a fé transmitida e vivida de geração em geração (a tradição viva da Igreja); e, inevitavelmente a iluminação do Espírito Santo, que desperta em nós o acto de acreditar, tê-los-emos como verdadeiros. Em segundo lugar, no que diz respeito às dificuldades em acreditar, o nosso acto de fé depara-se coma dificuldade da invisibilidade de Deus, própria da sua transcendência e consequente inacessibilidade aos sentidos. Esta barreira desafia naturalmente o salto no desconhecido de acreditar sem ver, procurando ler os sinais no itinerário da fé. Dentro desta nuvem, está também o objecto da esperança cristã – o Reino que há-de vir – que também não vemos claramente e cujos contornos são perfeitamente indefinidos. «Salvos na esperança» diz-nos o Apóstolo Paulo. Em terceiro lugar, o mistério do Natal depara-se com a dificuldade da cultura dominante: da descrença, do agnosticismo, duma concepção do homem retido no horizonte fechado deste mundo, remetido para ausência da esperança na vida eterna, aprisionado no aqui e agora da existência, mergulhada nas ocupações, preocupações do quotidiano. Acolhamos, a propósito, a palavra lúcida do Papa Francisco que, referindo-se ao homem orante, declara: «é alguém que não suporta asfixiar-se na imanência fechada deste mundo; no meio dos seus esforços e serviços, suspira por Deus, sai de si erguendo louvores e alarga os seus confins na contemplação do Senhor»[1]. Como poderei acreditar no cumprimento da promessa de Deus em Jesus se, na minha concepção do homem, não cabe a esperança na vida eterna? A dificuldade de acreditar é, portanto, a dificuldade de esperar no admirável mundo novo no qual serei introduzido mediante a fé. Em quarto lugar, o mistério do Natal depara-se com a dificuldade do mistério da iniquidade, que aparece aos olhos do homem como uma contradição, um paradoxo, uma contradição frente ao amor de Deus (infinito). Se Jesus nasceu no seio da humanidade e está vivo entre nós, se Ele é o príncipe da paz, o amor em pessoa – «Deus é amor» – porquê o mistério da iniquidade com as suas miríades de faces, ramificações tentaculares minando a paz e a tranquilidade entre os humanos, aos seus mais diversos níveis (pessoal, familiar, dos povos entre si)? Onde está o sonho cumprido de Isaías – «o leão pastará com o cordeiro e não o devorará»? Qual a nossa resposta de crentes? Precisamente porque Ele é o Príncipe da paz, não está lá, onde está a guerra e, portanto, não é Ele o responsável. Ele só está onde a liberdade (humana) o permite; só entra onde a porta da fé se abre; só habita onde há paz e amor. O mistério da iniquidade é, portanto, um argumento a favor da necessidade de que os nossos corações sejam o presépio vivo onde Jesus poderá nascer para aniquilar o mal e o pecado. Ainda, finalmente, uma outra dificuldade em acreditar no mistério do Natal: a dor e o sofrimento provocados por uma qualquer provação: uma doença, um acidente, uma perda humana. Neste contexto existencial dramático ou mesmo trágico, pela peregrinação da fé, hoje, aqui nesta celebração, entremos na gruta de Belém e adoremos o Deus Menino. Que os nossos corações se encham de alegria e de esperança porque este Menino nasceu para abraçar o mistério do sofrimento e da dor e, solidário connosco, atingido de igual modo pela dor. Estamos aqui para que Ele nos ajude a levar a cruz, de rosto transfigurado, até ao calvário onde será transformada em aurora de ressurreição. E Ele dir-nos-á sempre: «vinde a mim todos vós que andais sobrecarregados e oprimidos e Eu vos aliviarei». Segundo Isaías Ele é «Conselheiro admirável! Deus forte! Príncipe da paz!» S. João deixou-nos o seu testemunho, que traça o sentido da fé em Jesus: «Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram do sangue, nem da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória». «Àqueles que O receberam»: somos nós, hoje, que aqui nos encontramos. O nome é a pessoa, representa a pessoa. Somos, portanto, convidados a acreditar em Jesus como dom do Céu à terra, presente de Deus à humanidade, princípio renovador dos nossos corações, semente de paz para toda a humanidade. Acreditemos n’Ele como acontecimento do passado fundado no testemunho de quem viu e acreditou: «nós vimos a sua glória», diz-nos o apóstolo. Acontecimento do presente. Este testemunho é uma realidade viva espiritual que chegou até nós, transmitida de geração em geração. Queremos também nós acolher esta realidade viva à qual termos acesso pela porta da fé, pela vida que se renova segundo a Sua Lei – a lei do amor – pela vida orante, pela liturgia, pela escuta da Sua Palavra, pela vida sacramental que nos dá acesso à graça que nos redime e salva. Sempre como membros do Seu Povo, do qual Ele é o Pastor e guia; de quem é a cabeça e nós o corpo. Acreditemos n’Ele também como acontecimento futuro alimentando a esperança de alcançarmos a plenitude do Seu Reino, de lâmpadas acesas da fé, da esperança e da caridade. Nós que assim O recebemos «não nascemos do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus». Trata-se, portanto, dum renascimento espiritual, duma vida nova, pela qual chamamos a Deus Pai e nos inserimos na fraternidade universal dos Filhos de Deus.
Santo e feliz Natal P J
[1] Papa Francisco, Gaudete et Exsultate, 147